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DESPOLITIZAÇÃO DOS CONFLITOS


O lugar e as possibilidades da política: da ditadura à “governança” neoliberal


Do Le Monde Diplomatique, 6 de outubro, 2015

Por Henri Acselrad


Verificam-se mudanças nos próprios sentidos e conteúdos da palavra política. Ela foi deixando de designar o domínio da ação do poder legítimo de organizar a vida coletiva e passou a ser associada à função de gerir as condições para o exercício de um poder que lhe é superior, o poder financeiro – como vimos na Grécia.




Num documento redigido no exílio, em 1972, Betinho discutia as dificuldades da ação política em condições de clandestinidade: “Ao se restringirem as possibilidades de viver direta e amplamente as situações onde as lutas, as reivindicações, a prática social se manifestavam, operou-se um distanciamento, às vezes até um desligamento da sociedade enquanto objeto de conhecimento, daí originando-se situações de refração, de distorção onde aparecem ‘substitutos’ dessa realidade”.1 Isolamento e dessintonia foram imagens frequentemente mencionadas para descrever, no Brasil, a dificuldade de a militância contra a ditadura fazer “a realidade política aparecer” ou torná-la transparente, permitindo à sociedade entrar na “cena política real”. Essas imagens procuravam exprimir a perda de sentido do real por parte dos militantes: “faltava a realidade, faltava a política”; “a realidade política desapareceu”. Hannah Arendt já assinalara como ser privado da liberdade de expressão e de meios de discussão significa “ser privado da realidade”.2


No entanto, se as organizações que combatiam a ditadura dispunham de conhecimentos limitados para formular suas estratégias, é importante não esquecer que essa situação afetava, à época, a sociedade em seu conjunto. A censura à imprensa e o empobrecimento do debate público geravam um manto de obscuridade sobre esse “real”. Todos foram então, de algum modo, obrigados a conviver com “substitutos do real”. É que toda fala crítica ao regime de exceção, quando expressa em lugar público, era considerada suspeita: um comentário questionador efetuado diante de uma banca de jornal podia ser visto como provocação policial. O silenciamento da vida política foi sendo internalizado – “não se falava de política com desconhecidos”. A própria militância, por sua vez, devia vigiar-se para, ao evocar questões políticas em espaços públicos, não ser confundida com policiais provocadores. Eis o que podemos chamar de “paradoxo da clandestinidade”: se, por um lado, o povo silenciava sua fala política, referindo-se apenas a “como a vida estava difícil”, os próprios opositores ao regime viam-se levados a restringir sua fala, prevenindo-se de serem confundidos com agentes provocadores.

Foi assim que a grande política transformadora, aquela investida no questionamento das estruturas orgânicas econômico-sociais vigentes,teve de se abrigar na clandestinidade, tornando-se pouco visível. A “pequena política” – aquela que se restringia à administração cotidiana de estruturas já estabelecidas –, por sua vez, apequenou-se ainda mais, submetida ao poder de exceção. Com a destruição das instituições da democracia formal, no âmbito do sistema político controlado pelo aparato burocrático do autoritarismo, a política “encolheu”. A palavra transformadora não pôde mais se fazer audível na esfera pública, passando a ser sussurrada em espaços privados e semipúblicos ou, então, buscando sua audiência por meio das irrupções violentas e episódicas, mediadas pelas ações armadas de oposição ao regime.

O espaço do exercício da política, nas condições excepcionais do arbítrio, desviou-se para as margens, ao custo de ter de fazer-se por “sinais de fumaça”, metáfora utilizada pelo militante Herbert Daniel para descrever a prática corrente a que os clandestinos se viam obrigados – de, por razões de segurança, queimar papéis contendo anotações e ideias. A fala política fora, pelo poder do arbítrio, substancialmente emudecida, ainda que a força crítica da militância subterrânea não deixasse de emitir seus sinais.

A política passava a se exercer em espaços frágeis, lugares onde as conversas poderiam veladamente introduzir e exercitar alguma reflexão crítica no seio da vida cotidiana. Isso porque, em regimes autoritários, a circulação do debate político é obrigada a restringir-se a enclaves que operam como micropúblicos, contraespaços, esferas de autonomia e interstícios da vida social que podem propiciar atividades de resistência, formação e mobilização de redes de apoio à luta contra o arbítrio.

Em contexto de liberdade de expressão, as arenas públicas são os espaços onde atores sociais definem e discutem situações percebidas como problemáticas. A restrição à constituição de tais arenas é constante nas sociedades que vivem sob o autoritarismo. A forma “comício relâmpago”, por exemplo, realizada com frequência por organizações clandestinas nos “anos de chumbo”, fazia o que não podia ser objeto de contestação no espaço público oficial e vigiado ser, de algum modo, debatido. O movimento em direção a uma microarena pública emergente, porém, era com frequência abortado, deixando de se constituir. As ditaduras operam um movimento permanente de destruição de tais arenas públicas emergentes, seja pela censura à imprensa, a dissolução de organizações populares, o encarceramento de críticos e oponentes, a exposição exibicionista do poder arbitrário da máquina repressiva ou a internalização do medo em larga escala na população.

O poder arbitrário, ao mesmo tempo que estreitava o espaço do debate público, promovia uma degradação do sentido das palavras: a quebra da legalidade democrática foi feita em nome da democracia; a censura foi justificada como requisito da proteção da liberdade; a produção cultural foi cerceada a pretexto da defesade valores; a justiça era encenada em tribunais militares de exceção que pretendiam encarnar uma supostalegalidade; um simulacro de Congresso operava sob a ameaça permanente de cassações de mandato.

Foi ao longo dessa escalada obscurantista que se lançou na ilegalidade o contingente mais substantivo de opositores que procuravam reinventar espaços para a política, redefinindo suas identidades, pertencimentos e modos de ação. As organizações clandestinas constituíram formas políticas que experimentaram dramaticamente os efeitos da “política antipolítica” do regime. A questão que então se colocava era: como investir na conquista da palavra quando esta estava restrita em sua capacidade crítica e se via emudecida pelo terror de Estado?

Cinquenta anos após o golpe de 1964 e trinta após o fim da ditadura, voltou-se a discutir o que dela restou: a violência de Estado; a militarização das polícias; a impunidade dos torturadores; a Lei da Anistia, pela qual os responsáveis pela ditadura perdoaram a si próprios; as evidências de que grandes interesses econômicos lucraram com o golpe, além de terem se envolvido no apoio à sua realização, à continuidade do regime que dele decorreu, e, em certos casos, no financiamento direto à repressão e à tortura. Mas restou também, sob novas formas, a degradação da política, mergulhada em um tipo de realismo que parece negar a possibilidade de o povo mobilizar sua inteligência coletiva para pensar sua própria condição, seu devir e os meios de construí-lo. É que a partir dos anos 1990 novas modalidades de restrição ao exercício da grande política foram se apresentando. Verificaram-se mudanças nos próprios sentidos e conteúdos da palavra política. Ela foi deixando de designar o domínio da ação do poder legítimo de organizar a vida coletiva e passou a ser associada à função de gerir as condições para o exercício de um poder que lhe é superior, o poder financeiro – como mostrou a recente usurpação da soberania grega.

Vale a pena, neste contexto, tentar observar, com um mesmo olhar, essas duas décadas que vão do autoritarismo até a vigência do neoliberalismo, sem perder de vista que, sob a ditadura ou sob a governança neoliberal, os meios de restrição à reflexão e ao debate são, sem dúvida, de ordens completamente distintas. É que, em lugar da antipolítica repressiva, exercida pelo regime de exceção até meados dos anos 1980, entraram em ação, desde os anos 1990, os mecanismos de uma antipolítica de mercado.

A operação de uma esfera pública, em que se garanta a livre expressão da fala política, significa a possiblidade de construir diferentes tipos de redes, relações e fóruns de elaboração de pontos de vista e crenças partilhadas a respeito do mundo. Mas esses espaços são sempre objeto de disputa – de ações políticas de caráter inventivo, em condições de litígio sobre o objeto dos litígios, sobre a existência de litígio e sobre as partes que nele se defrontam. No contexto da “governança” neoliberal, porém, passou a vigorar o que Bourdieu chamou de “políticas de despolitização”,3 ações que procuram destruir a ideia da política como modo de exercício da inteligência coletiva na tentativa de superação da desigualdade.

O esforço em oferecer vantagens para os capitais internacionais – consenso social, segurança, sustentabilidade ecológica – passou a justificar que todos os projetos em disputa, nos diferentes espaços sociais, viessem a se anular em favor de uma competição entre as localidades por investimento. O empresariado, por sua vez, começou a adotar, com muito mais frequência, a tática da ameaça de fechar o negócio como forma de desmobilizar as reivindicações dos trabalhadores. Com a aquisição de maior mobilidade do capital – da capacidade de as empresas se deslocarem, a baixo custo, entre diferentes pontos do espaço –, aumentaram os efeitos da ameaça empresarial de saída, reduzindo a disposição dos trabalhadores de exercerem seus direitos de associação e de pressão sobre os acordos salariais.4

O economista polonês Michael Kalecki5 já havia caracterizado, nos anos 1940, as razões pelas quais o estado de laissez-faire é o preferido do empresariado: por meio da retração ou relocalização de seus próprios investimentos, os empresários podem gerar desemprego e disciplinar os trabalhadores. E, para impor suas regras aos governos, manejam o clima dos negócios, seu “estado de confiança”, acenando com as possibilidades de instabilidade social para constranger os governantes a adotar políticas que os favoreçam. Com as reformas neoliberais, as grandes corporações tornaram-se quase sujeitos das políticas governamentais, pressionando pela flexibilização de regulações políticas e impondo as condições mais desejáveis para a realização de seus negócios.

Eis, pois, que o período em que a política havia sido fortemente constrangida pela violência da ação repressiva foi seguido por uma conjuntura em que a política passou a ser esvaziada, dado o poder excepcional adquirido pelos capitais em detrimento dos demais atores. Esse poder reside na possibilidade de ameaçar retirar os investimentos dos espaços sociais onde vigora maior respeito a direitos e regulações para localizar-se em áreas onde esses direitos se encontram menos assegurados. Por meio dessa “chantagem locacional”, as grandes corporações colocam todos os trabalhadores do mundo em competição, favorecendo, com a criação de empregos, aqueles – menos organizados e menos protegidos por leis – que aceitem menores salários e menos direitos. O mesmo ocorre no que diz respeito às normas ambientais e urbanísticas – aquelas que deveriam, em princípio, estabelecer limites aos impactos destrutivos de grandes projetos sobre o espaço de vida de trabalhadores, de grupos étnicos, assim como de moradores de cidades hipertrofiadas pela chegada maciça de habitantes atraídos por promessas de emprego.

Durante a ditadura, a questão foi como, em condições de risco, politizar as conversas, dar densidade política a relações e situações, sob a vigilância e a violência do aparato repressivo. No caso presente, processos de despolitização foram se configurando por meio de dispositivos que previnem a politização dos conflitos. Uma naturalização da desigualdade alimenta as ilusões de que o mercado premia os que trabalham. O consumismo promove a organização maciça de indivíduos atomizados, que não percebem as estruturas de reprodução da desigualdade no acesso a recursos econômicos, territoriais, ambientais, judiciais e educacionais, de proteção social, de saúde, saneamento e urbanidade, assim como a apropriação privada e oligárquica dos meios políticos e dos espaços de informação e discussão públicas. A esfera de deliberação, no âmbito do sistema político formal, viu-se crescentemente absorvida pelo realismo de um debate entre o que “nós podemos” e o que “nós não podemos”. Isso sem falar do pragmatismo, que, em nome da “governabilidade”, favorece a privatização do Estado em mãos de cartéis empresariais, organizações religiosas ou oligárquicas.

Pouco resta da política quando a ordem das coisas é apresentada como inelutável. Como é possível fazer política usando palavras que pretendem, ao mesmo tempo, dizer tudo e seu contrário, quando se trata de definir que tipo de sociedade convém melhor a seus membros e como chegar lá? Diante das manipulações do marketinggovernamental e da mídia comercial, movimentos como os ocorridos em junho de 2013 nas grandes cidades do Brasil deram mostras, ao menos no que diz respeito a uma parte dos que protestaram, de pretender recusar a instalação do cinismo como forma de racionalização das interações sociais e políticas. Em meio à diversidade de manifestantes, havia os que mostravam ter perdido a crença no valor da fala política, assim como outros que nunca a haviam valorizado em seu poder transformador. Mas estavam presentes também aqueles que procuraram fazer das ruas um território para a reivindicação de igualdade. Ou, como nos termos que Betinho usou para descrever os dilemas da clandestinidade, fazer “a realidade política aparecer” ou torná-la transparente, permitindo à sociedade entrar na “cena política real”.

Coloca-se assim, como em outras circunstâncias históricas se havia colocado para a militância clandestina contra a ditadura, a questão da busca desse espaço movente que precisa ser reinventado constantemente, no qual se definem identidades, pertencimentos e modos de ação. Só que essa reinvenção concerne aos próprios sujeitos políticos que procuram liberdades públicas e bens coletivos para todos, sem discriminação de classe ou raça, de modo que todos possam participar, em igualdade de condições, do debate sobre a construção de futuros.

 Henri Acselrad é professor do Ippur/UFRJ e pesquisador do CNPq. O presente artigo retoma questões debatidas no recém-lançado livro Sinais de fumaça na cidade: uma sociologia da clandestinidade na luta contra a ditadura no Brasil, Editora Lamparina, Rio de Janeiro, 2015.

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