Pages

Matar ou Morrer?

Novo livro de Vladimir Safatle, "O circuito dos afetos", pode ser lido como ”refilmagem“ de western clássico



 Da Revista Cult, 3 de outubro, 2015

Por Christian Ingo Lenz Dunker

 


foto: Divulgação
Matar ou morrer (High noon) é um faroeste “psicológico” de 1952, dirigido por Fred Zinnemann, com Gary Cooper no papel do xerife Will Kane. Ao saber que uma gangue de bandidos que ele havia prendido retornará à cidade para matá-lo, Kane foge com sua esposa. Mas algo indiscernível detém seu gesto e ele retorna à cidade para enfrentar seu destino. O filme acontece em tempo real, com várias intercessões do relógio, que escoa as horas antes da chegada do facínora. Nesse tempo Kane procura ajuda entre seus amigos e constata, desesperado, que o medo fala mais alto que os interesses individuais e que a necessidade de proteger a quem se ama torna todos, compreensivelmente, covardes. Nesse ponto de desamparo ele enfrenta, sozinho, a turba de bandidos.

O novo livro de Vladimir Safatle, O circuito dos afetos, bem poderia ser lido como uma “refilmagem” desse western clássico. Ele começa com a desativação de nosso consenso político, dominante no Brasil de hoje, de que o medo deve ser nosso afeto político hegemônico. Contudo, para além de matar ou morrer, do ódio e do amor, da angústia e da fraternidade, das paixões alegres e tristes, reside este afeto esquecido, ainda que fundamental em Freud, chamado desamparo (Hilflosigkeit). Trata-se nada menos do que redefinir a política a partir dessa afetação de nossos corpos e de superar a parceria covarde e mórbida da política hobbesiana entre medo e esperança.

“A política é, em sua determinação essencial, um modo de produção de um circuito de afetos, da mesma forma como a clínica, em especial em sua matriz freudiana, procura ser um mecanismo de desativação de modos de afecção que sustentam a perpetuação de configurações determinadas de vínculos sociais”, afirma Safatle. Viver sem esperança, como queria Lacan, é construir corpos políticos que ultrapassem a demanda de amparo. Sujeitos que não tenham medo de perder o que já está perdido desde sempre. O que há para perder são nossos predicados, nossos adjetivos identitários, nosso amor-de-si, que nos determinam como “alguém”. Desamparo é poder viver sem ter que ser alguém. É resistir a consagrar sua existência e ser determinado apenas como um indivíduo proprietário de conquistas, traços e adereços de identidade. Desamparado é aquele que vive sua vida como uma errância, assumindo sua indeterminação, entre negatividade e infinitude, despossuído de si mesmo, mais além da espera do trauma e da repetição do trauma. O ponto de partida de Safatle assimila uma intuição clínica fundamental: a cura da angústia e a travessia do mal-estar passam pela transformação da relação com o tempo.

Em Matar ou morrer, a tensão e o suspense são dados pela passagem impiedosa do tempo. Os bandidos estão chegando e não há gente disposta a ajudar. O ponto de torção acontece quando nos deparamos com o tempo bífido: finito e infinito. Ele envolve tanto o encontro marcado com a morte quanto o amor como repetição indefinida. Para entender o pensamento de Safatle é preciso ter em mente o estruturalismo francês assim como a teoria crítica alemã. Se o primeiro é marcado pela permanência da estrutura antropológica, o segundo concentra-se na dialética do tempo histórico. Entre ambos, Vladimir reteve não só a reposta de Lévi-Strauss a Braudel (as estruturas mudam, mas muito lentamente) mas também a resposta de Adorno a Celan (é possível poesia após Auschwitz, mas ela ainda está indeterminada). Entende-se assim o primeiro retorno inusitado do texto: contrapor a antropologia hobbesiana de Totem e tabu à utopia histórica de O homem Moisés e a religião monoteísta. Sem isso não saímos, nem na clínica, nem na política, da estratégia que cria medo para vender segurança (o poder que melancoliza) e só conseguimos pensar o poder como disputa pela soberania ou como nostalgia do pai. Sem isso terminaremos na psicologização de nossas demandas endereçadas a um Estado terapeuta.

Aqui se encontra uma elegante crítica da teoria de Lefort de que a economia do poder deveria prescrever uma espécie de manutenção permanente do vazio da função em relação ao conteúdo de quem a ocupa. Essa ideia de que as funções vazias são “encarnadas” por figurantes concretos, fulcro da democracia representativa, confia demais na tese de que o poder legítimo é poder desencarnado, é o poder sem corpo, consequentemente sem afetos. Essa teoria de que a democracia é o regime de separação e antagonismo permanente entre o lugar simbólico (vazio) e o real (encarnado ou pseudo-encarnado) é sintomática, pois isola e desqualifica os afetos e o corpo na política. Postular que o lugar do poder deve permanecer vazio (Lefort), que ele deve ser ocupado por um significante vazio (Laclau), ou que devemos passar por uma espécie de purificação política dos afetos (Kelsen), ignora a força transformativa do desamparo pela qual “Sujeitos políticos não constituem um povo, esta será a última lição de Freud. Eles desconstituem o povo como categoria política, sem para isso cair na ilusão de uma sociedade como mera associação de indivíduos”, como afirma o autor. Safatle cria uma curiosa proximidade entre Hobbes e Spinoza, como pensadores que esvaziaram o tempo, que perpetuaram o medo para justificar a soberania e que se uniram em torno de um pensamento que só consegue pensar a contingência como predicação, ou seja, como causalidade incapaz de absorver sua própria história. Ora, dessa maneira ambos excluem, cada qual a seu modo, a possibilidade da transformação radical, da revolução, como mudança impredicável. Ou seja, ambos fracassam pela limitação imposta por suas concepções de tempo. Contudo, como afirma Marcus Coelen em seu posfácio, não se trata nem de uma apropriação empírica, nem de uma teoria fraca sobre a relação entre psicanálise e política (por exemplo, como se vê na psicologia social das identificações e dos grupos), mas de uma teoria forte que liga psicanálise e política constitutivamente, por meio dos afetos e das patologias sociais.

O segundo movimento do livro é uma espécie de recenseamento crítico sobre o estatuto do corpo na contemporaneidade. De fonte de insegurança ontológica ele passa, pelas mãos do neoliberalismo, à condição de superfície de reconfiguração de identidades e disto para o corpo sexualmente ambivalente. Retornando ao estilo de análise crítica da mídia e da propaganda, que o leitor encontrará também em Cinismo e falência da crítica (Boitempo, 2008), Vladimir faz uma espécie de fenomenologia da possessão dos corpos pelo capitalismo imaterial e suas marcas. Isso prepara o terreno para conectar o papel do corpo na esfera do consumo com a nova incidência do corpo e dos afetos no trabalho e na produção. Aqui se encontrará também esse traço metodológico constante nas pesquisas do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP (Latesfip) que Vladimir coordena e que investiga a transposição de modalidades preferenciais de sofrimento, como a depressão ou a personalidade borderline, em sua relação com modalidades prevalentes e compulsórias de laço social e das configurações temporais do capitalismo.

Ainda que flexível e identitariamente maleável, ainda que prazeroso em sua nova relação com o trabalho, o corpo e seus afetos tornam-se cada vez mais um subterfúgio para negar a força transformadora da contingência e da anomalia. A recusa do desamparo, como experiência do corpo, transformada em dominação e nova razão de identidade, está na raiz da gestão neoliberal do sofrimento. A transformação do estatuto social do corpo no consumo é sincrônica à emergência do neoliberalismo como gestão do sofrimento no trabalho (como produção do impróprio). De certa maneira essa parte dá continuidade às teses de Grande Hotel Abismo (WMF Martins Fontes, 2012) em torno de uma antropologia do inumano, assim como o reposicionamento do desamparo é a figura esquecida de seu primeiro livro sobre A paixão do negativo (Editora Unesp, 2006).

A terceira parte do livro é o que se pode chamar de “ajuste de contas”. Nela, nosso Gary Cooper goiano enfrenta de forma contundente críticas e oposições acumuladas durante os últimos anos. Se uma verdadeira obra é aquela capaz de criar e de sobreviver aos seus próprios problemas, temos aqui um verdadeiro autor. Primeiro, ele ajusta as contas com Axel Honneth, este aliado metodológico, continuador da Escola de Frankfurt, que lançou um primeiro programa de renovação da teoria do reconhecimento. Acusando nele um excesso de confiança na intersubjetividade originária, Vladimir efetua a tão esperada manobra de extração da psicanálise “harmônica” de Winnicott e de intrusão da psicanálise “negativa” de Lacan. Síntese da peleja sobre Honneth:

“Para alguém que julga que tudo começou bem no colo da mãe não terá dificuldade em acreditar que tudo terminará ainda melhor em um jogo de futebol.” Nada como arrumar novos inimigos.

Depois vem um dos esclarecimentos mais aguardados sobre seu pensamento, a saber, por que sua teoria do reconhecimento e, consequentemente, renovação lacaniana do sujeito político e clínico, não é uma versão edulcorada de Hegel, Mead ou Marx? A resposta é tão simples quanto astuciosa. Trata-se de um conceito antipredicativo de reconhecimento. Um reconhecimento que não é apenas ato cognitivo, mas experiência dialética do desejo entre determinação e indeterminação; que não é elegia do eu, mas crítica de nosso cárcere involuntário no individualismo; que não é reificação de traços de identidade, mas aposta na força produtiva da contingência desinstitucionalizada. Três tiros à queima-roupa, – Real, Simbólico e Imaginário – bem no peito do lacanismo raso que só consegue pensar o reconhecimento como razão narcísico-imaginária.

Kant, a teologia cristã e o amor romântico serão os três vilões que surgem depois disso. Contra eles, um dos momentos mais espetaculares e imprevisíveis do livro: a recuperação da categoria marxista de proletariado. Como sinônimo dos despossuídos, como índice dos desinstitucionalizados, como força universal de transformação política, movida pela antipredicação, tal classe é reinventada para além de sua dicotomia tradicional com a burguesia e para além de sua redução ao trabalhador industrial. Surpreende ainda a elucidação, nessa parte do texto, de uma de suas teses mais controversas, apresentada em A esquerda que não teme dizer seu nome (Três Estrelas, 2012), acerca da importância da indiferença como condição de autonomia da política diante da cultura e da economia. Aclara-se aqui por que as lutas culturais, expressas em movimentos como o feminismo, os grupos que pleiteiam a ampliação de direitos dos gêneros ou a mobilização contra a opressão de negros e outras minorias étnicas, são um momento estratégico do esforço de reinvenção da política, mas não um fim em si mesmo. Também a mobilização em torno do progresso na distribuição de renda e na equidade de acesso a bens simbólicos como educação e saúde não deveriam subsumir todo nosso horizonte político. Mais além dessas duas estratégias necessárias e imprescindíveis está a dissolução do nosso modo de experimentar a propriedade, a começar pela propriedade de nossos corpos. Ou seja, se trata de uma política para além do pressuposto de identidade:
“Ela [a indeterminação] libera os conflitos de reconhecimento do terreno das diferenças culturais, com seus processos de construção e afirmação de identidades enquanto atributos da pessoa, nos abrindo a possibilidade de fundar ontologicamente uma zona de reconhecimento propriamente política”. É aqui que a tese sobre o desamparo, como experiência produtiva de indeterminação, o grau zero de nossos afetos e razão elementar de nosso mal-estar, rende os melhores frutos. É aqui que Vladimir não se coloca apenas como alguém capaz de conjurar velhos monstros do passado como Hegel e Marx, Freud e Adorno ou Bataille e Lacan, mas de pensar nossa época e sua profunda insatisfação com as limitações da forma partido, ou seja, tanto da política institucionalizada nas democracias liberais quanto de seus suplementos multiculturalistas. Quem está esperando mais um lance no duelo entre esquerda e direita será surpreendido com o convite para uma nova geografia.
O universalismo negativo do pensamento de Safatle é uma espécie de bala de prata contra o vampirismo que tem se aproveitado da renovação do pensamento de esquerda para manter viva a caça aos comunistas, como inimigos necessários para uma política do ódio. Esse universalismo aparece na recuperação crítica da noção de vida e de anomalia, retomadas do epistemólogo da Biologia, Georges Canguilhem. Esse universalismo aparece ainda em sua crítica da pequena política baseada na confrontação de unidades particulares de gozo. Ele prospera também nessa versão não liberal do corpo e dos afetos como fonte primeira e última de nossa relação com a liberdade. Liberdade que será encontrada e rediviva naquela figura que imaginariamente melhor representa sua negação, a saber, o desamparo. Como o herói bíblico de Jó; como Kierkegaard, o amante às voltas com a repetição; como o Lumpenproleteriat de Marx, como o sujeito lacaniano sem predicados, a figura teórica da despossessão atravessa o livro. Ela nos provoca e nos ensina que é preciso inventar uma nova modalidade de ter, de possuir, de se apropriar das coisas, das ideias, das pessoas e de si mesmo. Ali onde nosso judicialismo patológico só consegue ver contratos e indivíduos, ali onde há um infinito de responsabilidades por vir. Só ao final entende-se por que o livro abre com Kafka, de O processo e os seus juízes leitores de pornografia barata. É porque Safatle quer libertar a política de sua condenação a ser mera reinvindicação de ampliação de direitos, por meio de grupos organizados, dirigidos por interesses e afetos comuns.

Nenhum comentário:

Postar um comentário